O cérebro no mundo digital (ou como construir um cérebro duplamente letrado)

Patrícia Scherer Bassani
7 min readFeb 3, 2021

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O livro “O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era”de Maryanne Wolf discute a seguinte ideia: “a qualidade de nossa leitura não é somente um índice na qualidade do nosso pensamento, é o melhor meio que conhecemos para abrir novos caminhos na evolução cerebral de nossa espécie”.

O livro está organizado em 9 capítulos (ou cartas endereçadas ao leitor). Ao longo do texto, a autora nos apresenta diferentes estudos das áreas de psicologia, neurociência e linguística, para justificar a relevância que os processos de leitura profunda desempenham na formação intelectual, socioemocional e ética dos sujeitos.

Aqui apresento apenas um recorte da relação entre a leitura e o uso de dispositivos digitais. O livro endereça questões importantes sobre a relação entre os processos de leitura profunda & sociedade, que não abordei aqui.

Capa do livro

O ato de ler não é um ato inato e natural, mas uma invenção cultural. Aprender a ler, portanto, é possível em função do princípio da neuroplasticidade. A plasticidade do cérebro “nos permite formar não só circuitos cada vez mais sofisticados e expandidos, mas também cada vez menos sofisticados, dependendo dos fatores ambientais” (p. 31).

Portanto, o circuito do cérebro leitor é influenciado por fatores ambientais, como:

a) o que lemos: sistema de escrita e conteúdo;

b) como lemos: a mídia — impresso ou tela;

c) como é formado: métodos de instrução (como aprendemos a ler).

Outro princípio que nos habilita ao processo de leitura está relacionado com a possibilidade de emergência de grupos especializados de células — estas formam grupos de trabalho (conglomerados) que aprendem a executar determinadas funções. Assim, “esses grupos especializados constroem as redes que nos permitem ver os menores traços das letras ou ouvir os elementos mais sutis nos sons da língua (ou fonemas) literalmente em milissegundos)”(p.31).

A leitura profunda requer uso de raciocínio analógico e inferência, para que possamos “desvendar os múltiplos patamares de sentido daquilo que lemos” (p. 78). O uso constante das complexas aptidões analógicas e inferenciais é o que nos permite o desenvolvimento de um pensamento crítico, que é a “melhor maneira de vacinar a próxima geração contra a informação manipuladora e superficial, seja em textos ou telas” (p. 81).

A última etapa do ato de ler é o insight!

“O insight é a culminação dos múltiplos modos de exploração que mobilizamos acerca daquilo que lemos até o momento: a informação colhida no texto; as conexões com nossos melhores pensamentos e sentimentos; as conclusões críticas conquistadas; e logo o salto de consequências imprevisíveis num espaço cognitivo onde podemos, quem sabe, vislumbrar pensamentos completamente novos” (p. 83).

A pesquisadora destaca a expressão “olhar calmo” como forma de destacar as preocupações e esperanças em relação ao leitores do século XXI. A expressão, criada no âmbito das artes, descreve o ato de contemplar, concentrar-se no ato. Entretanto, o que acontecerá com os leitores que fomos quando o olhar está cada vez menos calmo? Por meio de diferentes telas, a mente dispara de um estímulo para outro em um processo de atenção parcial contínua.

O percurso da autora nos leva a refletir — o processo da leitura profunda está em perigo?

Com certeza nossos hábitos de leitura estão mudando. Se, por um lado, estamos lendo mais, “é raro que essa leitura seja contínua, constante ou concentrada” (p. 100).

Qual deve ser a nossa preocupação com isso? A informação está se tornando entretenimento e não um meio de empoderamento! Nesse caso, “percebida continuamente como uma forma de entretenimento no nível da superfície, a informação permanecerá na superfície, potencialmente impedindo o pensamento real, em vez de aprofundá-lo” (p. 101).

A informação como entretenimento superficial é potencializada principalmente pela leitura em dispositivos digitais. A pesquisadora apresenta estudos em andamento que buscam analisar como o tipo de leitura em telas vai mudando a própria natureza da leitura. Esses estudos consideram a análise dos movimentos oculares, que mostram uma frequência no “ler por cima”, em estilo F (leitura do inicio, um pouco do meio e fim) ou em zigue-zague.

Além do modo de leitura, os estudos também analisam a relação entre a materialidade tangível do livro físico enquanto facilitador da imersão em função da dimensão sensorial — “o toque acrescenta mais uma dimensão àquilo que é ativado quando lemos uma palavra impressa, dimensão essa que pode ser perdida na tela” (p. 106).

A autora nos apresenta a seguinte questão: “o que podemos fazer contra os possíveis efeitos negativos das diferentes mídias sobre a leitura, sem perder suas contribuições imensamente positivas para as crianças e para a sociedade?” (p. 140).

Ela nos apresenta um possível percurso.

Nos 2 primeiros anos devemos ler para as crianças. Essa experiência oportuniza o desenvolvimento linguístico e conceitual, pois quando você lê para as crianças, “você as expõe a palavras que elas nunca ouvem em outros lugares, e a sentenças que ninguém usa ao redor delas” (p. 169). A interação, a atenção compartilhada e a exposição diária a novas palavras e novos conceitos proporcionam o começo ideal de uma vida de leitor.

A autora sustenta que as características que balizam a experiência inicial de leitura são a fisicalidade e a recorrência (ver/ler de novo), que é potencializada pelas páginas físicas.

A ênfase no físico encontra respaldo no entendimento de que a leitura não tem a ver só com o cérebro das crianças pequenas, mas envolve o corpo como um todo, “elas veem, cheiram, ouvem e sentem os livros […] também os saboreiam” (p. 170), e isso não dá para fazer em um tablet ;-)

Durante este período de idade, indica-se que as crianças tenham um contato limitado com dispositivos digitais. Os dispositivos digitais não devem ser vistos como ilegais nem usados como prêmio.

“Antes dos 2 anos, a interação humana e a interação física com os livros e outros materiais impressos são o melhor acesso ao mundo da língua falada e escrita e do conhecimento internalizado, que são os blocos que vão montar o circuito de leitura mais tarde” (p. 173).

Entre 2 e 5 anos, devemos cercar as crianças de livros, palavras, letras, números, lápis de cor, música e todo o tipo de coisa capaz de provocar a criatividade, habilidades comunicativas e exploração física em ambiente interno e externo.

Conectar ou não conectar? A exposição aos recursos digitais deve ser introduzida de forma mais gradual e de maneira mais ponderada (do que acontece hoje, quando vemos o smartphone como a nova babá eletrônica).

“As crianças precisariam ser ajudadas a conceber essas mídias como parte do seu ambiente de fundo, como o são a televisão e os aparelhos de som, não como algo a ser usado para ocupar cada instante ocioso de seu curtíssimo tempo entre 2 e 5 anos de idade” (p. 179).

Isso é muito mais fácil de dizer do que fazer, concordam?

O que precisamos observar? O conteúdo digital apropriado e o tempo de uso do dispositivo digital.

Mas, quais os aplicativos mais adequados? Não dá para confiar apenas na descrição daqueles que se classificam como educativos — o mais indicado é brincar com as crianças no início para verificar se vale a pena.

Sugestão de tempo de uso: para crianças pequenas (2–3 anos) no máximo 30min e para as crianças maiores (4–5 anos) no máximo 2 horas/dia. É importante observar que crianças nesta idade algumas vezes já usam os dispositivos na escola.

Entre 5 e 10 anos as crianças começam a aprender a ler. A autora traz dados preocupantes baseados no cenário americano — 2/3 das crianças americanas do quarto ano não leem em nível “proficiente” — com fluência e compreensão adequadas.

Como construir um cérebro duplamente letrado?

Precisamos construir uma infância que não seja dividida entre dois meios de comunicação, mas está imersa no melhor de ambos, com mais opções a caminho.

“Nossas crianças do século XXI precisam desenvolver hábitos mentais que possam ser usados em vários meios e mídias. Portanto, nossos professores também precisam de muito mais conhecimento do que têm atualmente sobre como o aprendizado digital pode contribuir para resolver a apresente crise de nossos estudantes — sem exacerbar os crescentes problemas de atenção, conhecimento de fundo e memória” (p. 213).

Nos primeiros 5 anos: preferencialmente explorar experiências em meio físico, com a introdução gradual do meio digital.

Entre os 5 e 10 anos: introduzir diferentes formas de leitura e aprendizado de base impressa e de base digital — oportunizar que a criança tenha o mesmo nível de fluência em cada um dos meios.

Ao mesmo tempo que as crianças aprendem a pensar e a escrever com base no texto impresso, também aprendem a pensar de modo diferente no contexto digital. Os dispositivos digitais podem ser explorados como um meio para codificar e programar.

A partir de 10 anos:

“Se tudo correr bem nesta proposta, quando estiverem aproximadamente com 10 ou 12 anos, a maioria das crianças será proficiente na leitura em dois meios e em múltiplas mídias e capazes de circular sem esforço entre elas em função de diferentes tarefas” (p. 228).

Os desafios são grandes e as pesquisas ainda são insuficientes, mas já existem inúmeros estudos que podem subsidiar nossas práticas enquanto pais ou professores!

“Estamos todos navegando por uma transição que nos levará a uma cultura digital completa, com muitas incógnitas. É a natureza das transições. É importante que não nos lancemos à frente sem apoio no que conhecemos, nem retrocedamos ao passado” (p. 183).

Referência:

WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.

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Patrícia Scherer Bassani

Professora do PPG em em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade Feevale. Abordo temas e dilemas da vida digital :-) https://linktr.ee/patriciab